Na noite dessa segunda-feira (14), representantes do Poder Judiciário estadual, dos Poderes Legislativo e Executivo participaram do primeiro dia de debates do I Webinário paraibano – “Cuidado em Rede: Política para as pessoas com transtorno mental em conflito com a lei”. Dividido em três momentos para discussões relacionadas às pessoas diagnosticadas com doenças mentais e que estejam em conflito com a lei, o evento on-line abordou, em sua primeira mesa, três experiências exitosas com o Sistema de Justiça em diferentes locais do País. Durante o evento, ocorreu, também, o pré-lançamento do Plano Estadual de Atenção Integral à pessoa em sofrimento mental em conflito com a lei no Estado da Paraíba.
Ao realizar a abertura do webinário, o desembargador do TJPB Joás de Brito Pereira Filho, que é coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário da Paraíba, citou a médica psiquiatra brasileira Nise da Silveira, reconhecida mundialmente por sua abordagem ao tratamento de humanização em relação aos doentes mentais e tentativa de introduzir um novo olhar à saúde mental. Além disso, afirmou que o evento tem o melhor dos propósitos, que é o de deflagrar uma discussão ampla, multidisciplinar e multifacetada acerca de uma temática caríssima e que, portanto, precisa ganhar corpo, redimensionar-se e ser vista sob novas perspectivas.
“Os sujeitos com transtornos mentais e em conflito com a lei formam uma grande massa no sistema carcerário. No Brasil, tem crescido o volume de casos, demandando de nós, componentes do sistema, quer de Justiça, quer de Saúde, práticas mais eficazes de tratamentos, sabendo que a internação tem se mostrado ineficiente. A solução passa pelo expurgo do embrutecimento e da aplicação cega do comando legal. É nossa missão humanizar o tratamento do doente, com acolhida, compreensão, suporte de toda natureza e exata percepção de que ele tem uma patologia e não é um criminoso por aptidão”, analisou Joás Filho.
O secretário de Estado do Desenvolvimento Humano, Tibério Limeira, salientou a importância da temática discutida durante o webinário, bem como os desafios em relação à rede de saúde mental e sua interface com a rede de atenção psicossocial e o sistema penitenciário. “O desafio é grande no sentido de consolidar e garantir recursos suficientes com uma rede estruturada e desinstitucionalizar cada vez mais, trabalhando o processo antimanicomial. É fundamental conseguir dialogar com o Sistema de Justiça, o Legislativo e o Executivo para construir mecanismos que fortaleçam esse processo e garantam, por exemplo, que a loucura não seja criminalizada e ter, de fato, alternativas penais e gerais para garantir o cumprimento das medidas”, argumentou.
Para o juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luís Lanfredi, que coordena o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, o empenho do Poder Judiciário paraibano, bem como do Poder Executivo estadual, é perceptível por meio das parcerias feitas com o Conselho, a exemplo do Programa Justiça Presente. “O programa surgiu com objetivos definidos para desenvolver estratégias e focar o monitoramento dos sistemas prisional e socioeducativo, com foco no resgate dessas pessoas em conflito com a lei. Neste webinário, o CNJ cumpre uma de suas vocações, que é jogar luzes sobre um público historicamente invisibilizado nas políticas penais. Afastados do convívio social, as pessoas com transtorno mental em conflito com a lei ficam em manicômios, que se transformam em prisão perpétua com a complacência da Justiça e da família. Temos de pensar em um modelo de cuidados que perpassa a proteção, os direitos e a assistência à saúde mental, o que será possível com a parceria de todas as instituições”, frisou.
Por sua vez, o secretário-executivo de gestão da Rede de Unidade de Saúde do Estado, Daniel Beltrammi, falou do desafio de discutir e avançar com a temática. “Precisamos avançar na desconstrução do conceito de cuidado como aquele que entra e começa a resgatar aquelas vidas. Não é fácil fazer essa virada. O tema é muito poderoso e não é possível fazer essa desconstrução sem uma reestruturação das residências terapêuticas. É preciso apostar na construção de uma rede que não esteja centrada na atenção hospitalar e que esta seja de curtíssima participação. Estamos juntos para cumprir essa tarefa em nome do bem-estar das famílias paraibanas”, enfatizou.
Experiências – O juiz Carlos Neves da Franca Neto, titular da Vara de Execução Penal da Capital e integrante do Grupo de Trabalho Interinstitucional e Interdisciplinar em Saúde Mental (GITIS), foi o responsável por mediar a primeira mesa temática do webinário, que abordou as experiências exitosas no Sistema de Justiça no que concerne à abordagem das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei. Simbolicamente, o magistrado fez o pré-lançamento do Plano Estadual de Atenção Integral à Pessoa em Sofrimento Mental em Conflito com a Lei no Estado da Paraíba.
“A partir do Programa Justiça Presente do CNJ, o eixo de discussão de saúde mental que nos foi apresentado e, com apoio do TJPB, montamos o GITIS. A partir disso, houve a discussão efetiva sobre esse tema tão importante e a necessidade de construção desse plano. É um trabalho feito com a responsabilidade de muitos e esperamos que possamos superar o desafio da desinstitucionalização e buscar a humanização, com a criação de uma rede de atendimento, além de buscar tornar o cuidado com a saúde mental, sobretudo das pessoas em conflito com a lei, preponderante a qualquer outro modelo e paradigma”, ressaltou.
– Experiência do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ – TJMG): A psicóloga judicial do TJMG, Fernanda Otoni, trouxe a experiência do PAI-PJ que, há 20 anos, trata a pessoa com transtorno mental e em conflito com a lei de forma humanizada e individualizada, ou seja, privilegiando a individualidade de cada um e de cada caso. Por meio de uma pesquisa de estudantes universitários, realizada à época de diversos crimes que estavam sendo cometidos em Minas Gerais e em diversos locais do País, a exemplo do que ficou conhecido como “Maníaco do Parque” e o “Massacre de Columbine”, ficou comprovada a violação dos direitos dos pacientes do Hospital Psiquiátrico local. “Eles não tinham direito a falar, conviver e ser respondidos e tratados. Eles eram considerados inumados e suas vozes eram tidas como de delírio e loucura”, disse a expositora.
Foi a partir disso que se passou a subverter a forma como os pacientes eram vistos e o tratamento em busca da cura. “Demos início a uma rede comunitária e aberta. Uma comissão estudava os casos encaminhados por determinação judicial para atendimento e acompanhamos a singularidade de cada sujeito, permitindo considerar a subjetividade durante os casos e a singularidade do caso clínico. Desenvolvemos um projeto terapêutico singular, com foco nos laços de sociabilidade e articulação e cuidado em rede. No lugar de doença mental, temos insistido em dizer pessoa em situação de sofrimento psíquico. Onde, antes, vigorava a periculosidade, apostamos em sociabilidade”, explicou Fernanda Otoni.
– Experiência do Programa de Cuidado Integral do Paciente Psiquiátrico (PCIPP) no TJPI: O juiz José Vidal de Freitas relatou a sua experiência junto ao Tribunal de Justiça do Piauí, que enfrentou inúmeros desafios, inclusive da sociedade local, que não compreendia a importância da desinternação e do tratamento humanizado aos pacientes com transtornos mentais, especialmente os que estavam em conflito com a lei. “Durante uma visita ao Hospital Penitenciário, vi, junto com o promotor de justiça, que nada havia de saúde. Além disso, muitos pacientes com transtornos mentais estavam alojados na colônia agrícola, em uma situação surreal de abandono. Então, a decisão de retirar todas essas pessoas e devolvê-las às suas residências, bem como a de enviar os próximos casos a um hospital público do Estado foi bastante criticada naquele momento. Somente anos depois, buscamos um entendimento por meio da conciliação”, contou o magistrado.
Através do entendimento de que a lei antimanicomial deveria ser seguida, foi montado um provimento criando as regras e ouvindo os demais interessados, a exemplo da Defensoria Pública, MP, OAB e entidades ligadas ao movimento. “Assim, foi criado, em 2016, o Programa de Cuidado Integral do Paciente Psiquiátrico, que diz que deve ser dado tratamento necessário durante tempo necessário, tendo em vista, exclusivamente, o cuidado do paciente. Fizemos diversos eventos pelo estado e outras localidades do País, porque não queríamos que esse entendimento ficasse apenas com a gente. Temos residências terapêuticas e é gratificante ver que deu certo”, comentou o juiz José Vidal.
– Experiência do “Projeto Praçaí” no TJPA: O juiz Cláudio Rendeiro, que atuou por quase cinco anos na Vara de Execução Penal no TJPA, destacou a importância da atuação da equipe multidisciplinar, que o alertou inicialmente para a questão das internações indefinidas. Além disso, o magistrado relatou que teve contato com outras experiências exitosas em curso em Tribunais de Justiça do País, e que esse conhecimento foi essencial para modificar a forma como enxergava a pessoa com transtorno mental em conflito com a lei. “Troquei a lente da presunção da periculosidade pela possibilidade da sociabilidade. O primeiro desafio que tivemos foi a transposição do obstáculo jurídico, porque as decisões eram muito simétricas e ortodoxas. Então, passamos a começar a fazer desinternações progressivas, a partir de um estudo interdisciplinar de vários profissionais da Vara de Execução Penal
e consideramos o laudo como um e não o ator principal para balizar a decisão judicial”, explanou.
Para o magistrado, além da equipe multidisciplinar, foi importante contar com um defensor público e um promotor que partilhavam da mesma visão. “Como todos ficaram assustados com a desinternação, percebi a necessidade dessa discussão. Retomamos o Encontro Estadual de Execução Penal e, inicialmente, discutimos vários temas, dentre eles o da desinternação. O encontro seguinte foi específico para debater apenas medida de segurança”, disse o juiz Cláudio Rendeiro, acrescentando que, a partir disso, foi criado o Projeto Praçaí, fazendo uma homenagem ao açaí, típico da região, e a sonoridade com o “sair”, que era o objetivo da iniciativa.
“Criamos, também, o EAP, que é um mediador entre a justiça, a família e o encaminhamento da pessoa que sai do hospital para tratamento ambulatorial. Essa experiência tem dados estatísticos muito satisfatórios e, durante o tempo em que permaneci na Vara de Execução Penal, tivemos quase que zero reincidentes. Temos, também, experiências fantásticas de reencontro com a família, de pessoas que haviam perdido o elo social e, agora, são vistos novamente como sujeitos”, informou o magistrado.
O evento – Participaram, também, do primeiro dia de webinário, o deputado e presidente da Assembleia Legislativa da Paraíba, Adriano Galdino; a secretária de Estado da Mulher e da Diversidade Humana, Lídia Moura; o secretário de Estado da Administração Penitenciária, Sérgio Fonseca; o promotor de justiça e coordenador do Centro de Apoio às Promotorias Criminais e das Execuções Penais, Lúcio Mendes Cavalcante; o procurador regional dos direitos do cidadão, José Guilherme Ferraz; o presidente da AMPB, juiz Max Nunes; e o presidente da Comissão de Pessoa com Deficiência da OAB-PB, Filipe Sales.
O webinário continua nos dias 16 e 18 deste mês, com as discussões tendo início às 19h. O evento é resultado das interlocuções construídas entre componentes do Grupo de Trabalho Interinstitucional e Interdisciplinar em Saúde Mental (GITIS), em parceria com o Programa Justiça Presente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e com a Escola Superior da Magistratura da Paraíba (Esma/PB).
O evento será transmitido pelo canal do YouTube do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (TJPB), através dos seguintes links: dia 16 – https://youtu.be/d0zJgJrG5Vg e dia 18 – https://youtu.be/HrU3qMhR-Ls. Durante o webinário, o chat de mensagens do YouTube será o espaço destinado a comentários e perguntas de participantes para os convidados. Além disso, será disponibilizado o link de acesso ao Plano Estadual de Atenção Integral à pessoa em sofrimento mental e conflito com a lei no Estado da Paraíba e ao formulário para etapa consultiva: https://drive.google.com/drive/folders/1V7VOl6q17qsYV3K8EXbEpr06ftxaVzPS?usp=sharing.
PROGRAMAÇÃO:
16/09/2020 – Quarta-feira, 19h – 2ª Mesa temática: Atenção às pessoas em sofrimento mental em conflito com a lei
Expositoras:
Renata Goya – Promotora de Justiça do Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MP/MS);
Janete Valois – Coordenadora da Equipe de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei (EAP) – Maranhão;
Carol Khouri – Defensora Pública do Estado de Pernambuco (DPE-PE);
Mediação: Alyne Alvarez – Prof. Dra. UFCG
18/09/2020 – Sexta-feira, 19h – 3ª Mesa-Redonda: Avanços na Paraíba e desafios para o cuidado em rede
Expositores(as):
Marcos Salles – Corregedor de Justiça (TJPB);
Olívia Almeida – Coordenadora Adjunta do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura na Paraíba (MEPCT/PB);
Larissa Rodrigues – Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania (LouCid- UFPB).
Mediação: Pollyanna Alves – Programa Justiça Presente (PNUD-CNJ).
Por Celina Modesto / Gecom-TJPB