“O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe de seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!…”. Inicio esse texto com essa citação do conto ‘De cima para baixo’, de Artur Azevedo… Vamos em frente… Explico mais adiante…

A noite da sexta-feira, dia 15, teve estreia do espetáculo de conclusão do curso básico de teatro da Fundação Espaço Cultural da Paraíba (Funesc). Sob direção de Léo Palma, ‘Cidade Cão’ foi encenado no palco do teatro Paulo Pontes para algumas centenas de espectadores.

Muito pode ser dito a respeito de ‘Cidade Cão’. Peça é um excelente exercício de reflexão sobre a sociedade do medo e também sobre a microfísica do poder. Cultura do medo tão bem esmiuçada por Frank Furedi, e a microfísica – claro – relatada por Michel Foucault.

Possível também seria – com relação a ‘Cidade Cão’ – discutir influências do teatro brechtiano, ao entregar à plateia um drama narrativo que veste as batas da análise crítica da sociedade, evidenciando realidades ao derrubar máscaras e apontar autoritarismos.

Cris Estevão, Denis Santos, Kizy Silva, Malu Diniz, Matheus Rockenbach, Rafaella Pedrosa, Ruan Araujo, Sissa Gonçalves e Tatiany Cabral são artistas iniciantes, mas já com um elevado grau de entrega em suas interpretações. Não estão prontos… Mas entregam tudo que têm através de diálogos perversos e sarcásticos (à guisa de Luiz Vilela)!

Destaque para Malu Diniz (serelepe, dinâmica e convincente, ainda que com voz pouco projetada). A personagem de Malu, qual a personagem de Silvio Fiorani, não é “nem bonita, nem feia. Secretária”.

Destaque também para o grandalhão Matheus Rockenbach (de voz e gestos estentóreos, ainda que um tanto caricato); e Kizy Silva (atriz surda que faz história ao assumir tamanho grau de protagonismo no teatro paraibano).

Os intérpretes de Libras em cena são Giselle Virginio, Nemu Lima e Cleiton Willian. E não é somente acessibilidade o que a plateia vê. É interpretação artística! Destaque para Giselle Virgínio, uma intérprete-atriz capaz de criar uma espécie de multiverso de ‘Cidade Cão’…

Difícil parar de olhar para a interpretação em LIBRAS, mesmo quando não se sabe nada a respeito de Língua Brasileira de Sinais. Importante: os intérpretes não ficam no canto do palco. Eles compõem a cena!

Mais importante ainda: à atriz Kizy Silva, surda, cabe um papel de protagonismo no desfecho (sem spoiler!), uma adolescente – como diria Bacic – perigosamente distraída! Kizy é poeta. Sabe usar o olhar.

Na fase final da peça, é ela quem catalisa e amalgama tal microfísica do poder à sociedade do medo os males da exclusão social, capitalismo e a Internet como multiverso medonho e bizarro.

Com uma hora de duração, ‘Cidade Cão’ é praticamente todo em preto & branco. Composição cênica onde menos é mais… Figurinos, armas de fogo e máscaras muito bem confeccionados. A maquiagem enfatiza esse mundo nada colorido (pleno de medos e dualidades).

Com direção e dramaturgia de Léo Palma, ‘Cidade Cão’ tem assistência de direção de Lainne Melo e Vittor Blam. É um espetáculo inspirado nos contos ‘A cabeça’ (de Luiz Vilela) e ‘Nunca é tarde, sempre é tarde’ (de Silvio Fiorani).

Ainda ‘Pequenas distrações’ (de Gregório Bacic, também cineasta, autor do documentário ‘Retrato de classe’) e ‘De cima para baixo’ (de Artur Azevedo, mencionado no início desse texto e que traduz muito bem a microfísica do poder).

Em cena, na hora do vamuvê, tudo começa com moradores encontrando uma cabeça decepada no meio da rua.  O restante aqui já foi relatado. Vale a pena assistir àquilo que essa nova leva de atores e atrizes têm a apresentar.

Neste sábado, dia 16, a partir das 20h, tem mais uma apresentação de ‘Cidade Cão’, no teatro Paulo Pontes do Espaço Cultural José Lins do Rêgo, com classificação indicativa 14 anos. Ingressos a R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Repito: é um espetáculo que merece ser visto.

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