Nunca esteve tão em voga – no mundo cinematográfico em especial – a temática ‘multiverso’. Basta visitar muitas das produções audiovisuais da Marvel e o fabuloso ‘Tudo em todo lugar ao mesmo tempo’. Para além da teoria do multiverso (na fronteira da física teórica, na mureta das questões filosóficas e das proposições físico-matemáticas), há muitas maneiras de se ler a temática quando vestida de poesia.
A tal cosmologia inflacionária combina com as infinitas possibilidades da arte e suas múltiplas bolhas. Disparidades. Idiossincrasias. Personalismos e percepções. Individualidades coletivizadas em formatações, muitas vezes, de universos espelhados. Vale para produções audiovisuais. Vale para a arte. Vale para as pessoas! Espelhamentos podem, inclusive, ser estratégias de sobrevivência.
Todo mundo conhece quem não pareça viver nesse mundo e – mais! – pareça viver em um universo criado por si mesmo. É o multiverso de cada um… Próprio, quitado e de papel passado. Cada um que – desejando ou precisando – crie as próprias versões de si mesmo e de suas realidades circunstanciais no cenário quântico de nossos cotidianos mais confortáveis e seguros. É estranho, doutor, mas é possível…
Que o diga a personagem Lili Toda Boa, interpretada pela paraibana atriz Márcia Souto no monólogo ‘De hoje eu não passo’. Com texto a partir da obra de Lu Evans e sob direção de Sebastião Formiga, Márcia constrói uma interpretação que nos leva ao riso, ao cômico e ao lúdico, evidenciando uma visita ao ‘multiverso da loucura’. Difícil ter certeza com relação ao que é real e ao que é inventado no relato tagarelado da senhora Toda Boa.
O ‘multiverso da loucura’ é um dose de veneno para matar rato. Assim, a válvula de escape de Lili revela um torpor de gracejos mórbidos diante da explícita criação de diversas verdades. Mundos paralelos em um espetáculos que se propõe a colocar luz e reflexão na sozinhez de cada um e nos estratagemas fundamentais para se manter vivo. Lili, em ‘De hoje eu não passo’, é uma mulher que encontra abrigo em seu multiverso.
Espetáculo – que estreou este ano no teatro Ednaldo do Egypto – vai do escracho ao exercício da sensualidade. Tem humor interativo e luzes transfilosóficas. No palco, a personagem de Márcia Souto buga o quengo da plateia ao mesmo tempo em a faz rir. Mentiras sinceras são bem interessantes na boca da personagem, que tem como ponto de partida as últimas horas de vida após tomar veneno por engano…
‘De hoje eu não passo’ apresenta um direção correta e com assinatura. Para além do texto falado, há nesta peça gestuais, luzes e uso de acessórios e figurinos que podem ser acessados semioticamente com frases gigantescas e poeticamente belas. Senão belas, reveladoras…! Verdade que o monólogo ainda poderia sofrer cortes de cinco a 10 minutos (inclusive na cena musical!!!), mas isso não põe em risco o nível alcançado pela peça.
No final das contas, ‘De hoje eu não passo’ entrega à plateia uma alternativa interessante de humor entre inocente e adolescentemente erotizado (com interpretação convincente e verdadeira) e uma janela reflexiva a respeito de como todos nós criamos nossas próprias verdades, a partir de nossas próprias razões, traumas, desejos e necessidades. É uma peça que vale a pena ser vista.
Se você ainda não viu, corra hoje para o teatro Santa Roza, em João Pessoa. O monólogo será encenado às 20h, dentro da mostra Roza Cênica. Preço? Não tem ingresso. A orientação nessa mostra é pagar quanto quiser. Repito: ‘De hoje eu não passo’ vale a pena.